Relato da Despedida

Na madrugada do dia 09 de maio de 2007, as quatro e meia da manhã, o despertador do meu telefone tocou anunciando que o dia da minha partida para a cidade de Vila Velha, no estado do Espírito Santo havia chegado.

Na minha despedida, pensei em falar particularmente com cada um da minha casa e agradecer pessoalmente tudo o que haviam feito por mim. Mas nada aconteceu como eu havia pensado. Foi melhor assim... Toda aquela intenção deu lugar a uma tensão controlada, ao nervosismo, à ansiedade, ao medo, às lágrimas...
Nesta manhã minha família olhava meus movimentos em profundo silêncio e em nossas mentes cenas da vida familiar, das alegrias e tristezas como num filme. Despedir-me naquele início de manhã foi muito dolorido. O carro já fora da garagem abarrotado de coisas era o sinal para meus sobrinhos, meu irmão mais velho e cunhada e principalmente para meus pais de que eu realmente iria pegar a estrada.

Enquanto limpava o pára-brisas do meu carro, meu pai colocou-se em pé, bem em frente à minha garagem segurando o portão, como se sinalizasse não querer a minha partida. Ele agüentou até onde pôde e depois não mais, tomado pela emoção rompeu o silêncio com um choro espremido, um choro de dor... “ai meu Deus...” Não tive outra reação se não deixar a água escorrer na mangueira ao chão e, ir ao seu encontro, abraçá-lo e chorarmos a mesma dor.

Naquele momento tentei acalmá-lo, dizendo que não se preocupasse porque eu iria devagar e chegaria bem. Mas o choro do meu pai não demonstrava apenas preocupação com a minha viagem, suas lágrimas, poucas vezes vistas por mim, diziam que ele começara sentir a dor da minha ausência, mesmo abraçados. A ausência do cuidado e até mesmo das palavras duras por conta da minha preocupação com a sua saúde e com o seu bem-estar. A ausência do filho e amigo que nos tornamos.

Compreendi o choro e a dor do meu pai. A gente fica grande e em algum momento os nossos pais vão se tornando “nossos filhos”, às vezes mais rebeldes do que nós fomos algum dia. Da mesma forma queremos ‘educá-los’ e podemos cometer os mesmos erros. Depois de alguns momentos tensos e trocas de palavras duras, desentendimentos, ficávamos mais sensíveis um ao outro. Depois das tensões quando um silêncio profundo se estabelecia, palavras não ditas, diziam-nos que nos amáva-mos muito.

Abraçados na despedida, junto com a água que escorria da mangueira, se foram as palavras duras e todas as tensões familiares... Levantei a cabeça do meu pai e olhando em seus olhos o disse: “eu te amo pai! Muito obrigado por tudo!”. Imediatamente ele respondeu que também me amava e me falou para não desistir do ministério que Deus havia me dado.

Depois de ouvir isto, já poderia viajar bem apesar da dor no peito. Dor e felicidade se misturaram, porque mesmo sabendo do amor do seu Geraldo por mim, esta foi a primeira vez em trinta e dois anos que ouvi meu pai dizer um “eu te amo”.

Eu o compreendo perfeitamente. É claro que ao longo destes anos chegar à esta compreensão não foi fácil, mas não o culpo por isso. Compreendo a sua história de vida e suas limitações. E mesmo que não me falasse nada, há muito tempo comecei perceber que ele sempre disse “eu te amo” de um outro jeito, do seu próprio jeitão.

Ele “gritou” várias vezes sua declaração de amor por mim fazendo. Jamais alguém faria o que ele já fez por mim se não me amasse profundamente. Se julgamos importante ouvir a famosa e doce declaração “eu te amo”, bem mais importante é compreender o amor, percebê-lo e interpretá-lo. Deixando de abraçar o meu pai, precisava reunir outras forças para despedir-me da minha mãe.

Dona Eliúdes não quis sair de dentro de casa para falar comigo. Fui ao seu encontro e no terraço nos encontramos: “chegou a hora mãe”. Nos abraçamos fortemente e choramos muito. Mas pela primeira vez mamãe não quis permanecer muito tempo abraçada a mim. conhecendo a minha mãe como eu conheço, aquele abraço não seria suficiente para aliviar a dor que ela também sentia.

Depois de insistir no abraço, a segurei e tentei acalmá-la um pouco, mas ela queria chorar sozinha e não me ver saindo... Qual é a mãe que se sente tranqüila em ver um filho deixar a casa? Muito mais minha mãe, que sempre fez várias recomendações em minhas saídas.

Somente neste dia da despedida que entendi de maneira mais clara que para a minha mãe, a nossa casa sempre foi extensão do seu útero. Perdi as contas de quantas vezes ao voltar tarde de algum lugar para casa, ela ainda estava acordada me esperando, para só então dormir tranqüila, “... estava apavorada meu filho...”.

Sempre preocupada comigo, sempre querendo o meu bem, sempre orando por mim, sempre querendo a minha felicidade, sempre solícita a estar perto mesmo sem palavras quando percebia a minha tristeza. Sempre quis fazer os gostos dos filhos preparando os pratos prediletos de cada um. Nunca deixou ‘passar em branco’ as datas do meu aniversário. Minha mãe é do “partido” do sempre. Sempre à disposição, sempre foi ‘mãezona’, sempre me amou.

Algumas palavras de despedida com a Dona Eliúdes foram trocadas antes da minha partida. E na semana enquanto ainda organizava as caixas com os meus livros, como se lê-se a minha angústia disse: “Você pode ir em paz meu filho, e não se preocupe comigo porque eu sei me cuidar”. Eu sabia exatamente o que ela estava me dizendo, intimidade entre mãe e filho que não serão reveladas aqui.

Fico feliz porque ela conseguiu superar algumas coisas bem difíceis, mas que a fizeram crescer e encontrar sua singularidade e liberdade pessoal para a vida. Ela sabia que em ouvindo isto, eu ficaria mais tranqüilo. E de fato fiquei.

Mas esta fala da minha mãe me tranqüilizou em parte, pois há poucos dias antes do meu retorno ao Espírito Santo, ela esteve internada com um quadro clínico sério. Ainda no Rio de Janeiro numa conexão no Aeroporto Internacional Tom Jobin, ao ligar para casa fiquei sabendo a notícia de que, esta que disse saber “se cuidar” estava internada num hospital em Recife por conta de uma grave infecção urinária, conseqüência imediata da falta de ingestão d’água.

Foram quase quinze dias no hospital e na primeira semana não tive a coragem para dizê-la que estaria voltando à Vila Velha. Ela ainda estava muito fragilizada emocionalmente por conta do internamento. Mas já passada a primeira semana, pudemos conversar sobre a minha partida e fui surpreendido quando ela me disse que “já sabia que isso iria acontecer”.

Ainda no hospital Dona Eliúdes me disse: “Se Deus falou isso ao seu coração meu filho vá em paz. Eu vou sentir muito, mas fazer o quê? Esta é a sua vida”. Acho que para minha mãe foi bem mais fácil dizer isto do que para o meu pai. É que Dona Eliúdes tem um pé no mundo. Acho que este espírito aventureiro que tenho, herdei por parte da família dela. Meu avô saiu da Paraíba para Pernambuco e de lá, para o Rio de Janeiro onde passou dezoito anos.
Dois dos meus tios ganharam também as estradas deste país como motoristas durante vários anos. Já a minha mãe tem necessidade de sair, de passear e para isto um pequeno motivo basta. Ela certamente não rejeitará nenhum convite para sair, ela gosta de ver o mundo.

Mas naquela manhã da despedida a idéia da estrada dava a sensação à minha mãe de que o seu “útero” permaneceria vazio... Depois que me largou ela saiu chorando para algum lugar da casa...

Somente a “compreensão” quase inexplicável da vocação e vontade de Deus para nossa existência, justificam as decisões e renúncias que eu e muitos outros que vivem o ministério tomam e/ou experimentam na vida.

Quem vive o ministério em algum momento poderá renunciar projetos pessoais, sonhos, o ambiente familiar e talvez a sua própria cultura. E tudo isto em nome do imprevisível, porque não sabemos como o Espírito nos conduzirá e realizará sua vontade em nós e em nossos ministérios, pois o “vento sopra onde quer. Ninguém sabe de onde ele vem, nem para onde ele vai... assim é todo aquele que é nascido do Espírito”. No coração apenas uma certeza: é Deus quem chama o resto é fé e dependência. Constrangidos pelo Amor a renúncia encontra sua razão.

Resolvi fazer este relato com o objetivo de mostrar que por trás de toda esta minha história, existe uma história muito maior, a história da Graça de Deus. É ela quem me fortalece, anima, ensina e renova dentro de mim, toda a crença de que seguir a Jesus vale a pena. Pontuando a minha história um texto: “Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. E qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo” – (Lc.14:26-27). Um abraço para Misael, Deninha e Gabriel.